Thursday, May 19, 2011

A noite das mulheres cantoras

A noite das mulheres cantoras
Lídia Jorge
D. Quixote, Março 2011

“Ainda não deu nada quem ainda não deu tudo” (p. 254).

Acabei de cerrar as cortinas sobre o livro “A noite das mulheres cantoras”. Mas não completamente. Uma nesga ficou aberta e assim perdurará, deixando entrever o que está por detrás do pesado pano da memória.

Neste livro inesquecível Lídia Jorge, para além de traçar um perfil psicológico admirável das personagens, oferece-nos uma cábula para o exame de um estilo de vida infelizmente cada vez mais actual em que campeia a ambição e a competitividade.

O romance é, pois, uma metáfora e, simultaneamente, um libelo contra a ambição sem limites.

Na sua construção, Lídia Jorge pontua partes dos capítulos com frases isoladas que parecem ser deixadas à solta mas, na realidade, são a síntese do que se passou e o preâmbulo do que se segue.
Um grupo de mulheres, com um bando de homens esvoaçando à sua volta, e conduzidas por uma “maestrina” rigorosa, rica e poderosa, bastas vezes sem coração, tenta rumar a um futuro sorridente com a fama certa a espreitar a cada esquina, abdicando de tudo, até da própria vida, se necessário, para conseguir os objectivos propostos.

“O futuro transformava-se numa sala iluminada que pretendíamos tomar de assalto, mesmo que viéssemos a ter de deixar parte do corpo entalado nas portas por onde passássemos” (p. 80).

Dentro do sonho de futuro não cabia o presente. Nem sequer os afectos, que tinham de ser despidos à porta da garagem onde as mulheres cantoras ensaiavam. O sonho era isso mesmo, o sonho. E, quando sonhamos, não temos mão sobre os nossos sentidos. Não será isso verdade?

“Uma euforia separava-me de um mundo, atava-me a um outro, e nesse estado, entalava palavras entre a realidade e a compreensão” (p. 121).

No meio de tudo isto a narradora e também personagem parte integrante do grupo, consegue, por vezes, ter lucidez suficiente para sobreviver. Consegue perceber que a vida humana é mais importante do que qualquer objectivo. São os objectivos que servem para a vida e não o contrário.

Ao longo de mais de trezentas páginas Lídia Jorge constrói, como no exemplo que se segue, imagens maravilhosas:

“A avó já está lá em baixo, arrumada à bengala, a ver-me subir e descer. Quando passo por perto, na azáfama da poda, ela olha-me no rosto, como se a minha cara fosse uma agulha e nele a avó pretendesse enfiar uma linha. Quando subo, espreita-me de olhos fechados, como se estivesse na praia a olhar para os barcos” (p. 241).

No romance, como na vida, alegria e tristeza andam, quantas vezes , de mãos dadas.

Uma última citação:

“[…] fizemos um gesto de libação, alegres de tão tristes” (251).

“A noite das mulheres cantoras” é um livro que vai sobreviver à voragem que o mundo da edição vive actualmente. O romance de Lídia Jorge, tal como algumas das suas anteriores obras, depois da euforia da exposição da novidade nas mesas, voltará às prateleiras das livrarias... enquanto as houver!

Sines, 19 de Maio de 2011
Joaquim Gonçalves

1 comment:

Priscila Lopes said...

gostoso teu blog; sempre interessante um blog que se propõe a dicas de leitura. parabéns.