Wednesday, October 22, 2008

Viagem marítima com Dom Quixote

Viagem marítima com Dom Quixote
Thomas Mann, D. Quixote, Setembro 2008-10-22

Este é um livro pequeno e bonito. De capa dura, preta. Sobrecapa lilás. Ambas com letras brancas. Não sendo de espantar, é um objecto agradável. Os livros, para além dos conteúdos, não deixam de ser objectos e, por esse lado, também cativam ou não. Este cativa. Só lhe falta, no interior, uma fita para marcar as páginas.
Já que estamos no interior, reparemos nas diversas fotos que o ilustram. Sempre em página ímpar, ocupa, juntamente com a legenda, toda a sua superfície. São, sobretudo, fotografias de navios utilizados por Mann nas suas diversas viagens à América, legendadas por uma síntese das respectivas histórias e características. Mas também há fotos de pessoas: Thomas Mann nas diversas viagens invariavelmente com a esposa; com membros da tripulação; com notáveis da época.
Viagem marítima com Dom Quixote é o diário que Mann escreveu, entre 19 e 29 de Maio de 1934, durante a viagem que fez de Boulogne para Nova Iorque no vapor de turbinas Volendam.
Enquanto nos vai dando pormenores da vida a bordo, pequenos apontamentos sobre um ou outro passageiro, uma ou outra característica do navio, Mann envolve-nos, imperceptivelmente, nas suas ideias político-sociais, de forma descontraída que o percurso marítimo em primeira classe proporciona: “Ai a humanidade! O seu progresso intelectual e moral não conseguiu acompanhar o técnico, ficou muito para trás, […] e a descrença em que o seu futuro possa ser mais feliz que o seu passado é desta fonte que se alimenta” (p. 92).
Onde entra, então, o Dom Quixote no livro? Exactamente na segunda parte de cada apontamento no diário. Depois de nos confiar as suas mais recentes observações, Thomas Mann passa, como quem não quer a coisa, para as reflexões sobre a leitura a bordo, precisamente o clássico de Cervantes.
Crítico em qualquer dos sentidos, o Autor consegue fazer com que, a quem, como eu, nunca o fez, faça apetecer ler o Dom Quixote.
Para Thomas Mann, a obra eleva-se “de uma brincadeira satírica divertida como foi concebida a um livro que se inscreve na literatura mundial e constitui um símbolo de toda a Humanidade. Considero ser essa a regra, que as grandes obras foram o resultado de intenções modestas. A ambição não deve estar no princípio, não antes da obra; tem de crescer com a própria obra, que, ela própria, quer ser maior do que o artista divertido e espantado pensava, estar associado àquela, e não ao Eu do artista. Não há nada mais errado que a ambição abstracta e anterior à coisa em si, a ambição enquanto tal e independente da obra, a pálida combinação do Eu. A que assim seja fica aí sentada como uma águia doente” (pp. 108-110).
Já agora, e para terminar, uma última citação que considero importante, especialmente para gerações posteriores a 1974 e ainda para os distraídos: “[…] a liberdade apenas adquire valor se for conquistada à falta da mesma, quando constitui uma libertação” (p.108).

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