A desumanização
Valter Hugo Mãe,
Porto, Setembro 2013
É a olhar para o mar que tento encarreirar algumas palavras
sobre este livro.
No alto da falésia, a ouvir o marulhar da maré-baixa, lá ao
fundo, ondas pequenas contra as rochas a descoberto, à minha altura gaivotas a
planarem indiferentes.
É assim que tento sair de dentro da cabeça de Valter Hugo
Mãe que, no resultado das suas deambulações geográficas e psicológicas, nos
impôs A Desumanização, título que deu
ao seu mais recente livro.
E digo livro deliberadamente. Não, romance.
Acabado de ler a olhar para as lonjuras do mar, em manhã de
fim de Setembro quente, não consigo deixar a fria sensação que a fria Islândia
deixa cravada na pele.
Valter Hugo Mãe esteve lá mas não apenas de corpo.
Sentimo-lo nas cerca de 230 páginas, uma a uma.
A história poderia passar-se noutro local? Poderia. A
história, que dá corpo ao livro, poderia. O livro, entendido como a soma de
todos os conteúdos, não.
A história, aliás, é o que menos importa nesta leitura, com
tanto de bom que encontramos a envolvê-la, a dar-lhe corpo, e alma, e sentido.
Ironicamente, com o título A Desumanização, a leitura só nos pode relembrar, sempre e sempre a
nossa pequenez humana perante uma natureza incomensurável.
O Autor transporta-nos para o arquipélago gelado e
mostra-nos a luz que lá colheu e guardou nos próprios olhos até a derramar no
papel para no-la oferecer. Mas também colheu modos de vida e de relações.
Relações entre as pessoas e entre estas e os animais ou a Natureza.
Poético e duro, Valter não se inibe na escrita e, com a
poesia a fazer-se prosa, saindo-lhe pelas pontas dos dedos de uma mão, soca-nos
no estômago frágil, a abarrotar de “comida” civilizacional, com o punho bem
fechado da outra, ordens directas do cérebro que guardou sensações para as
devolver, transformadas em livro.
Livro ladrão.
Como diz a menina da história humana que tem por título A Desumanização:
“Senti-me muito feia
por andar atrás da beleza. Era tão diferente de fugir. O meu pai
desentristeceu-me. Prometeu que leríamos um livro. Os livros eram ladrões.
Roubavam-nos do que nos acontecia. Mas também eram generosos. Ofereciam-nos o
que não nos acontecia.” (p.59).
Obrigado, Valter, por nos colocares nas mãos este ladrão.
Sines, 20 de Setembro de 2013
Joaquim Gonçalves
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