Monday, March 9, 2009

O Tigre Branco

O Tigre Branco, Aravind Adiga, Presença, Março 2009

Confesso que dificilmente continuaria a ler um livro que começa assim:

“Para o Gabinete do Primeiro-Ministro:
Sua Excelência Wen Jiabao
Pequim
Capital da nação Amante da Liberdade da China
Do Gabinete de:
«O Tigre Branco»
Um homem dado à reflexão
E um empresário
Que reside no centro mundial de Tecnologia e Subcontratação
Electronics City Phase I (mesmo à saída de Hosur Main Road)
Bangalore, Índia

Sr. Primeiro-Ministro, […]”, etc.

Mas continuei a ler – com esta obra o autor recebeu o Man Booker Prize 2008; o livro foi-me oferecido e comprometi-me a lê-lo e, sobre ele, dar a minha opinião.
Não é a primeira vez que sou surpreendido desta forma. Já uma vez aqui falei do preconceito na leitura. Este seria mais um exemplo. Felizmente ultrapassei a fase de desconfiança inicial, até pela curiosidade despertada por um amigo, turista de mochila, que bastas vezes me tem falado do País e de características do povo indiano. Por outro lado, este é um livro escrito por um indiano que viveu e estudou na diáspora.
Depois de um início daqueles, Aravind Adiga vai passando imperceptivelmente de uma forma epistolar para a narrativa, de que somos distraídos apenas quando, por vezes, torna a utilizar o vocativo.

“Para além do mais, eu tinha aquilo com que nós, que crescemos na Escuridão, valorizamos acima de tudo. Uma farda! Uma farda de caqui!
No dia seguinte, fui ao banco – aquele que tinha uma fachada de vidro. Vi-me reflectido nas vitrinas – todo vestido de caqui. Pus-me a andar de trás para a frente diante daquele banco uma dúzia de vezes, a olhar para mim boquiaberto.
Só faltava ele ter-me dado um apito, para eu estar no paraíso!” (pág. 58).

Este é um exemplo da tragicomédia a que assistimos ao ler “O Tigre Branco” – a vida de quem nasce na Escuridão, ofuscado e obcecado pelos que vivem na Luz, onde se chega apenas por nascimento ou, acima de tudo, com ouvidos alerta, muita paciência e esperteza, custe a quem custar, mesmo que à família.

“Eis as três piores doenças que assolam este país, meu senhor: a tifóide, a cólera e a febre eleitoral” (pág. 78).

Da denúncia/desabafo de alguém que está acima de quem tem algo a perder, o autor indiano, confrontando amiúde a realidade do País com o outro gigante – a China, acaba por nos proporcionar um fabuloso romance, tendo como veículo uma carta que se confunde com um livro de notas de viagem, viagem pela vida e pelos sonhos.

“Os sonhos dos ricos e os sonhos dos pobres – nunca coincidem, pois não?
Está a ver, os pobres toda a vida sonham em ter o suficiente para comer e em ficar parecidos com os ricos. E os ricos, com que é que sonham?
Com perder peso e ficar parecidos com os pobres” (pág. 168).


Da abnegação e subserviência escrava com que Balram Halwai trata o amo mais próximo, Ashok, que teve contacto com o Ocidente – estudou na América e regressou à Índia, o protagonista vai evoluindo pela modéstia ignorante, passa pela aprendizagem do provinciano na grande urbe, até chegar a um estado de esperteza demente.
Balram diz-nos que a Índia é o “Galinheiro”. Ele não quer ser ave naquela gaiola.

“Cada facção está eternamente a tentar enganar a facção oposta; e assim tem sido desde o início dos tempos. Os pobres vencem meia dúzia de batalhas (as mijadelas nos vasos das plantas, os pontapés nos cães de estimação, etc.), mas está claro que há dez mil anos que os ricos têm a guerra ganha. É por isto que um dia, alguns homens sábios, movidos por compaixão aos pobres, lhes deixam sinais e símbolos em poemas, que parecem versar sobre rosas, raparigas bonitas e coisas do género, mas quando compreendidos correctamente, revelam segredos que permitem ao homem mais pobre à face da terra interpretar a guerra de dez mil anos em termos que lhe são favoráveis” (pág. 189).

Assim um vendedor de rua de livros explicou a Balram o que era a poesia e como ler nas entrelinhas.
Balram Halwai saiu do “Galinheiro”. Terá saído?
Aravind Adiga, como que tricotando miudamente, dá-nos, de facto, em “O Tigre Branco”, um livro poderoso.

Joaquim Gonçalves
Março 2009

1 comment:

SEVE said...

O melhor livro que li em 2010.