Tuesday, January 31, 2012

Travessa d'Abençoada

Travessa d’Abençoada
João Bouza da Costa,
Sextante,
Fevereiro 2012

Vim a saber, no decorrer do romance, que o autor – João Bouza da Costa – foi o tradutor do excelente livro, já aqui falado, Comboio nocturno para Lisboa.

Mas, antes de tradutor, Bouza da Costa foi carteiro, limpador de vidros, vendedor de vinhos, pintor de cenários de ópera, professor e intérprete.

Em três momentos da sua vida deixou passar a História ao lado: deixou Angola em 1963, quando se iniciava a gesta independentista; saiu de Portugal em Setembro de 1974, logo após o 25 de Abril e abandonou a Alemanha em 1989, pouco antes da queda do muro de Berlim.

Todos estes factores influenciam a sua escrita fluida ao longo das 276 páginas.

A sua faceta de tradutor é denunciada por uma das personagens do romance, ao caracterizar a fauna noctívaga do Bairro Alto, em Lisboa: “Desde o suave milagre do Erasmo, o Bairro Alto foi invadido por uma juventude cosmopolita a estalar de desejos e expectativas. Por outro lado, um romance com o nome de “Comboio nocturno para Lisboa”, que o seu marido traduziu sem demasiado sucesso, parece que transformou a cidade num objeto de culto, num local de romaria, celebrado e revisitado em todas as estações do ano pela burguesia culta do centro da Europa” (p. 151).

Mas Travessa d’Abençoada, para além das inúmeras referências históricas e culturais de uma geração ligada à Europa, retrata fielmente a vida de uma quase pacata travessa de um bairro antigo de Lisboa, bem perto do Hospital Miguel Bombarda.

O retrato dos personagens é fantástico, a começar pelo Julinho do capacete, hóspede daquele estabelecimento de saúde que, com um capacate cor-de-rosa que lhe colocaram para não se aleijar nas inúmeras cabeçadas do seu dia-a-dia, percorre a zona em transe hipnótico.

Há o Leo, “um pintor de alguma lábia e muita inépcia, que agora se doutorou em arrumador e especializou em vendedor de medalhinhas em frente à estátua de Sousa Martins.
Quando ele me a sua pequena família se vieram instalar naquela freguesia marcada pelas múltiplas mazelas do Miguel Bombarda, o Leo, um antigo casapiano, era uma das atracções locais. Quando se enfurecia, abria portas à cabeçada e engalfinhava-se com a mulher em cenas de vale-tudo no meio da rua”
(p. 198).

Numa travessa “onde as distâncias entre as fachadas dos prédios não ultrapassavam os 5,6 metros” diz o Autor, “havia proximidade a mais, interpretação a mais, invenção a mais” (p. 206). E isso é o condimento mais que suficiente para o cruzamento de situações entre pessoas de classe e índoles bem diferenciadas. No fundo, no entanto, cada qual com a sua desgraça particular. “As pessoas dali alimentavam-se das abébias dos outros, viviam dos condimentos da sugestão, aproveitavam os momentos em que os vizinhos abriam a guarda e começavam logo a tecer as teias das suas pequenas perfídias, a partir da substância volátil de alguma eventualidade imaginada” (p. 207).

Por entre referências culturais, da música à pintura, não falta uma Herdade do Pessegueiro onde os cavalos são reis e uma visita ao restaurante em frente à Ilha do Pessegueiro, a sul de Porto Covo, para comer “os tais peixinhos fritos com arroz de tomate malandrinho […]. Sarguetas, pescadas à cana desde a orla da praia” (p.39).

Mas Travessa d’Abençoada é muito mais. A multiculturalidade de Lisboa, a solidão, o espírito do desenrasca que tão bem caracteriza grande parte do portugueses. E ainda o amor livre, a droga, o rapinanço

Travessa d’Abençoada, para além de um romance de vidas que se cruzam numa pequena artéria da cidade, parece-me ser O romance de uma vida após tanto cruzamento de vivências do Autor.

Um retrato da Lisboa de bairro, de uma sociedade, de várias gerações, num português actual, reconhecível e correcto. Um primeiro romance imperdível.

Sines, 31 de Janeiro de 2012
Joaquim Gonçalves

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