Caligrafia dos sonhos
Juan Marsé, D.
Quixote, Abril 2012
Pegar num livro que se anda a ler, abrir na página onde se
deixou, continuar a leitura sem que se tenha de voltar um pouco atrás para
retomar o fio à meada, não é normal.
Num livro de mais de trezentas páginas, que dificilmente se
lê de uma assentada, o que é normal é parar a leitura num parágrafo e, depois,
retomá-la a partir daí. Por vezes isso não é possível. Ou porque o sono teimou
em deixar uma página a meio, ou porque outros afazeres nos proibiram parar onde
acharíamos mais confortável.
Na leitura de Caligrafia
dos sonhos aconteceu-me de tudo mas, muitas vezes, parar a leitura a meio
de um capítulo - tenho as minhas técnicas para saber exactamente onde fiquei –
e, quando voltei à leitura, raramente tive de voltar atrás para retomar a
narrativa.
Isto, para mim, contribui em grande percentagem para as
características do que considero um bom livro. Mas este é apenas um pormenor.
Outra das características é, após a leitura, e quando me
predisponho a escrever sobre o que li, não me chegarem as palavras à mão. É
bom, pronto. Para quem me conhece e em mim confia, que isso baste! E basta
muitas vezes, felizmente. Os comentários e, não raras vezes, os agradecimentos
pela sugestão, assim o provam. Para os outros, paciência. Ou a curiosidade os
leva lá ou ficam sem saber o que perdem!
Em Prefácio, escreve António Lobo Antunes que “o humor, a vida, o sofrimento, a tristeza,
a alegria, tudo está aqui sabiamente doseado, sem alardes inúteis porque o
talento do Juan, além do mais, é de uma discrição absoluta. Nada há que
perturbe a eficácia do livro”.
Sobre a história que o catalão Juan Marsé nos conta,
valemo-nos da badana inicial:
“Em meados dos anos
quarenta, Ringo é um rapazinho de quinze anos que passa as horas mortas no bar
da senhora Paquita, movendo so dedos obre a mesa, como se praticasse as lições
de piano que a família já não lhe pode pagar. Nessa taberna do bairro de
Gracia, o miúdo é testemunha da história de amor de Vicky Mir e do senhor Alonso:
ela, uma mulher entrada em anos e de abundantes carnes, massagista de
profissão, ingénua e apaixonadiça; ele, um cinquentão garboso que acabou por se
instalar em sua casa. Ali vivem, junto de Violeta, a filha da senhora Mir, até
que sucede algo de inesperado: um domingo à tarde, Viky deita-se nas linhas
mortas de um eléctrico tentando um suicídio impossível e patético, e o senhor
Alonso desaparece para não voltar. A única coisa que dele resta é a promessa de
uma carta, que Vicky ficará esperando e desejando até à loucura, enquanto
Violeta rebola as suas esplêndidas ancas pelo bairro, indiferente a lisonjas.
A vida inteira decorre
pelo bar da senhora Paquita e sob o olhar de Ringo, que escuta, lê e finalmente
começará a escrever, enchendo de luz a triste caligrafia de toda uma geração
que alimentou os seus sonhos nos cinemas de bairro e nas ruas cinzentas de uma
cidade onde o futuro parecia algo improvável”.
Sines, 11 de Junho de 2012
Joaquim Gonçalves
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