Monday, June 11, 2012

Caligrafia dos Sonhos




Caligrafia dos sonhos
Juan Marsé, D. Quixote, Abril 2012

Pegar num livro que se anda a ler, abrir na página onde se deixou, continuar a leitura sem que se tenha de voltar um pouco atrás para retomar o fio à meada, não é normal.

Num livro de mais de trezentas páginas, que dificilmente se lê de uma assentada, o que é normal é parar a leitura num parágrafo e, depois, retomá-la a partir daí. Por vezes isso não é possível. Ou porque o sono teimou em deixar uma página a meio, ou porque outros afazeres nos proibiram parar onde acharíamos mais confortável.

Na leitura de Caligrafia dos sonhos aconteceu-me de tudo mas, muitas vezes, parar a leitura a meio de um capítulo - tenho as minhas técnicas para saber exactamente onde fiquei – e, quando voltei à leitura, raramente tive de voltar atrás para retomar a narrativa.

Isto, para mim, contribui em grande percentagem para as características do que considero um bom livro. Mas este é apenas um pormenor.

Outra das características é, após a leitura, e quando me predisponho a escrever sobre o que li, não me chegarem as palavras à mão. É bom, pronto. Para quem me conhece e em mim confia, que isso baste! E basta muitas vezes, felizmente. Os comentários e, não raras vezes, os agradecimentos pela sugestão, assim o provam. Para os outros, paciência. Ou a curiosidade os leva lá ou ficam sem saber o que perdem!

Em Prefácio, escreve António Lobo Antunes que “o humor, a vida, o sofrimento, a tristeza, a alegria, tudo está aqui sabiamente doseado, sem alardes inúteis porque o talento do Juan, além do mais, é de uma discrição absoluta. Nada há que perturbe a eficácia do livro”.

Sobre a história que o catalão Juan Marsé nos conta, valemo-nos da badana inicial:

“Em meados dos anos quarenta, Ringo é um rapazinho de quinze anos que passa as horas mortas no bar da senhora Paquita, movendo so dedos obre a mesa, como se praticasse as lições de piano que a família já não lhe pode pagar. Nessa taberna do bairro de Gracia, o miúdo é testemunha da história de amor de Vicky Mir e do senhor Alonso: ela, uma mulher entrada em anos e de abundantes carnes, massagista de profissão, ingénua e apaixonadiça; ele, um cinquentão garboso que acabou por se instalar em sua casa. Ali vivem, junto de Violeta, a filha da senhora Mir, até que sucede algo de inesperado: um domingo à tarde, Viky deita-se nas linhas mortas de um eléctrico tentando um suicídio impossível e patético, e o senhor Alonso desaparece para não voltar. A única coisa que dele resta é a promessa de uma carta, que Vicky ficará esperando e desejando até à loucura, enquanto Violeta rebola as suas esplêndidas ancas pelo bairro, indiferente a lisonjas.

A vida inteira decorre pelo bar da senhora Paquita e sob o olhar de Ringo, que escuta, lê e finalmente começará a escrever, enchendo de luz a triste caligrafia de toda uma geração que alimentou os seus sonhos nos cinemas de bairro e nas ruas cinzentas de uma cidade onde o futuro parecia algo improvável”.

Sines, 11 de Junho de 2012
Joaquim Gonçalves

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