Wednesday, April 17, 2013

Enquanto Lisboa arde, o Rio de Janeiro pega fogo




Enquanto Lisboa arde, o Rio de Janeiro pega fogo
Hugo Gonçalves, Casa das Letras, Abril 2013

Acabada a leitura do livro, entendi a frase de João Tordo em badana da capa: “Agarra-nos pelo colarinho e não nos larga até estarmos feitos num oito. Imperdível”.

O autor, Hugo Gonçalves, é um português a viver no Rio de Janeiro. Como cada vez mais jovens fugidos de tudo ou à procura de qualquer coisa. Acima de tudo, da sobrevivência.

Começa a história com o narrador no “Cais de partida” a despedir-se da sua doce e amarga Lisboa. Acaba com o retorno aos sons e cheiros da capital portuguesa.

Pelo meio, sucedem-se os encontros, atribulações, deslumbramento, paixões, de quem cai num paraíso envenenado – o Rio de Janeiro dos expatriados, das favelas e do calçadão. O Rio da banalidade das drogas: “A erva adoça mas desacelera, a maconha estiliza mas estupidifica” (p. 116).

São vários os personagens e as personalidades que não precisam de grandes descrições para as visualizarmos: “No hotel, um rececionista sem dentes conversava com uma prostituta sem maquilhagem” (p. 127).

Uma breve espécie de exame de consciência coloca os pontos nos is no que toca a culpa ou culpados da situação que leva à fuga:

“E agora estás longe do país onde cresceste, do continente civilizado que providenciou a tua formação, as tuas auto-estradas, os juros que te permitiram comprar toda aquela tralha que deixaste para trás num piscar de olhos” (p. 117).

Mas, agora, “Lisboa podia ruir, incendiada por credores e revoltosos, e o Rio de Janeiro flamejava fogos de orgia de fim de mundo” (p. 224). E, daqui, sai o título deste terceiro romance de Hugo Gonçalves.

Encontramos um Rio porto de abrigo, desde sempre, de todas as proveniências. Para além dos emigrantes portugueses, ali se encontram ainda – e do romance fazem parte – sobreviventes do Holocausto ou terroristas bascos. E, também, gentes do antigo regime português, sendo um PIDE uma das colunas dorsais deste romance quase policial.

Quando necessário, Hugo Gonçalves faz referências históricas ao imediatamente antes e pós 25 de Abril, quando o Brasil foi porto de abrigo de fugitivos da Revolução: “Os que ficaram em Portugal aproveitavam as novidades da democracia e mudavam de hábitos, até de aspeto. Os homens tinham cabelos compridos, barbas e patilhas, vestiam calças largas, as mulheres usavam botas até ao joelho e fumavam mais” (p. 129).

Mas é de uma Lisboa desencantada que sempre se fugiu, como Rachel fez, em tempos, nesta história em que somos confrontados com muitas coisas que se repetem apesar da mudança dos tempos:

“[…] a cidade capital do império – um império enorme, disperso por todo o globo, uma pletora de pessoas, cores de pele, tipos de cabelo e de comida, mas um império microcéfalo, cavalgado por déspotas e padres e poucas famílias, que mantinham uma mão na boca dos que queriam falar e outra na garganta dos que queriam fazer” (p. 165).

O narrador mostra-se profundamente conhecedor da geografia física e social do Rio de Janeiro e, a pé ou de bicicleta, de que ele tanto gosta, guia-nos pelas ruas, avenidas, pelos botecos, pelas favelas: “os semáforos são inimigos da tua velocidade, queres ir depressa e sem tocar nos travões, um videojogo que começa assim que sais de casa, traçando trajectórias, tentando antever para que lado vira um carro, se um pedestre se atira para a estrada ou um skater fará uma elipse que dê tempo para que passes, sem perigo, entre o homem que carrega cocos e o meio fio” (pp. 115-116).

É o Rio moderno que encontramos, apesar da capa nos induzir ao contrário: “Talvez o Rio também se torne uma dessas cidades onde não se lêem livros mas se sabe de cor 85 tipos de sashimi” (p. 122).

E, se a modernidade tem destas coisas, termino com a visão realista do narrador. No Rio ou em Lisboa, uma imagem que serve para qualquer parte do mundo:

“Olhava as fachadas dos shoppings, na janela do ônibus, e pensava que eram apenas isso, fachadas, atrás não havia nada. Uma cidade faz de conta […]” (p. 186).

Sines, 17 de Abril de 2013
Joaquim Gonçalves

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