Os demónios de Álvaro
Cobra
Carlos Campaniço,
Teorema, Fevereiro 2013
Hoje, de manhã, quando cheguei à livraria, depois de todos
os preparativos rotineiros de início de dia de trabalho, escolhi música
alentejana para a banda sonora da jornada.
Queria, de qualquer forma, continuar a onda de prazer que me
deu a leitura que terminara, horas antes, numa espertina de madrugada.
Conta-nos o livro a história de “Álvaro Cobra, um lavrador
que atrai fenómenos sobrenaturais e tão depressa é tido por bruxo como por
santo”.
Tudo se passa na, julgo que inventada, aldeia de Medinas, lá
para os lados da Serra da Adiça, onde convivem cristãos sem padre, judeus,
cristãos novos.
Para além de Álvaro, o autor oferece-nos personagens como “a bisavó Lourença, que conta cento e
cinquenta anos, […] a mãe, que consegue trabalhar a terra com uma mão e
cozinhar com a outra, […] Branca Mariana, a irmã excessivamente febril que vive
prostrada numa cama onde os lençóis chegam a pegar fogo”. Mas também a dona
de um bordel ambulante que, todos os anos, visita a aldeia por altura da Feira
de Setembro onde também aparece um nómada, vendedor de torrão doce cuja vistosa
filha, que o acompanha, vai mudar a história do lugar.
Mas não basta criar personagens. Vesti-los, dar-lhes consistência,
apresentar-nos as suas facetas mágicas pondo-nos a acreditar nelas, é trabalho
de filigrana. E Carlos Campaniço faz isso bem.
Diz a editora, em contracapa, que Carlos Campaniço “recicla de forma original o realismo mágico
para revisitar as virtudes e os defeitos das pequenas comunidades rurais do
nosso Portugal”.
Dirão alguns críticos e leitores que o realismo mágico já
está muito visto. Não o dirá quem, como eu em tempos, mergulhou nos encantos e
segredos das crenças e lendas de tradição popular, falando directamente com
gentes de aldeia. Velhos a contarem histórias que, de tanto ouvidas e desde há
tanto, se tornam verdadeiras. Mais novos, ainda sem muito mais informação do
que o “espírito santo de orelha”, a tomarem para si o que sempre se disse ou
ouviu dizer.
Chamem-lhe realismo mágico ou o que quiserem, o certo é que
livros como este deleitam-me e, com as suas fantasias, acabam até por não
deixarem que me desligue da terra. Do pó donde viemos e para onde vamos. É assim
a vida.
Com as suas particularidades, ficaram inesquecíveis, o
“Breviário das más inclinações”, de José Riço Direitinho; “Nenhum olhar”, de
José Luís Peixoto; “Os Malaquias, de Adréa del Fuego; “O fabuloso teatro do
gigante”, de David Machado; “A casa das Auroras”, de Cristina Carvalho, por
exemplo. Com ou mais de mágico no seu realismo, são livros que não deixam
apodrecer o cordão umbilical que nos liga à cultura de que somos feitos.
Acredito que, para leitores novos e urbanos, tudo soe de
forma diferente. Mas, até para esses, há sempre algo a descobrir neste tipo de
literatura.
Depois de nomes agora sobejamente conhecidos, Maria do
Rosário Pedreira descobre-nos mais um novo autor para alimentar a nossa boa
literatura.
Os demónios de Álvaro Cobra puseram-me, hoje, a ouvir música
alentejana. Nada acontece por acaso.
Sines, 14 de Março de 2013
Joaquim Gonçalves
1 comment:
Concordo. Estou a ler e a adorar.
Boas leituras
Patrícia
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