Enquanto Lisboa arde, o Rio de Janeiro pega fogo
Hugo Gonçalves,
Casa das Letras, Abril 2013
Acabada a leitura do livro, entendi a frase de João Tordo em
badana da capa: “Agarra-nos pelo colarinho e não nos larga até estarmos feitos
num oito. Imperdível”.
O autor, Hugo Gonçalves, é um português a viver no Rio de
Janeiro. Como cada vez mais jovens fugidos de tudo ou à procura de qualquer
coisa. Acima de tudo, da sobrevivência.
Começa a história com o narrador no “Cais de partida” a
despedir-se da sua doce e amarga Lisboa. Acaba com o retorno aos sons e cheiros
da capital portuguesa.
Pelo meio, sucedem-se os encontros, atribulações,
deslumbramento, paixões, de quem cai num paraíso envenenado – o Rio de Janeiro
dos expatriados, das favelas e do calçadão. O Rio da banalidade das drogas: “A erva adoça mas desacelera, a maconha
estiliza mas estupidifica” (p. 116).
São vários os personagens e as personalidades que não
precisam de grandes descrições para as visualizarmos: “No hotel, um rececionista sem dentes conversava com uma prostituta
sem maquilhagem” (p. 127).
Uma breve espécie de exame de consciência coloca os pontos
nos is no que toca a culpa ou culpados da situação que leva à fuga:
“E agora estás longe
do país onde cresceste, do continente civilizado que providenciou a tua
formação, as tuas auto-estradas, os juros que te permitiram comprar toda aquela
tralha que deixaste para trás num piscar de olhos” (p. 117).
Mas, agora, “Lisboa
podia ruir, incendiada por credores e revoltosos, e o Rio de Janeiro flamejava
fogos de orgia de fim de mundo” (p. 224). E, daqui, sai o título deste
terceiro romance de Hugo Gonçalves.
Encontramos um Rio porto de abrigo, desde sempre, de todas
as proveniências. Para além dos emigrantes portugueses, ali se encontram ainda
– e do romance fazem parte – sobreviventes do Holocausto ou terroristas bascos.
E, também, gentes do antigo regime português, sendo um PIDE uma das colunas
dorsais deste romance quase policial.
Quando necessário, Hugo Gonçalves faz referências históricas
ao imediatamente antes e pós 25 de Abril, quando o Brasil foi porto de abrigo
de fugitivos da Revolução: “Os que
ficaram em Portugal aproveitavam as novidades da democracia e mudavam de
hábitos, até de aspeto. Os homens tinham cabelos compridos, barbas e patilhas,
vestiam calças largas, as mulheres usavam botas até ao joelho e fumavam mais”
(p. 129).
Mas é de uma Lisboa desencantada que sempre se fugiu, como
Rachel fez, em tempos, nesta história em que somos confrontados com muitas
coisas que se repetem apesar da mudança dos tempos:
“[…] a cidade capital
do império – um império enorme, disperso por todo o globo, uma pletora de
pessoas, cores de pele, tipos de cabelo e de comida, mas um império
microcéfalo, cavalgado por déspotas e padres e poucas famílias, que mantinham
uma mão na boca dos que queriam falar e outra na garganta dos que queriam
fazer” (p. 165).
O narrador mostra-se profundamente conhecedor da geografia
física e social do Rio de Janeiro e, a pé ou de bicicleta, de que ele tanto
gosta, guia-nos pelas ruas, avenidas, pelos botecos, pelas favelas: “os semáforos são inimigos da tua
velocidade, queres ir depressa e sem tocar nos travões, um videojogo que começa
assim que sais de casa, traçando trajectórias, tentando antever para que lado
vira um carro, se um pedestre se atira para a estrada ou um skater fará uma
elipse que dê tempo para que passes, sem perigo, entre o homem que carrega
cocos e o meio fio” (pp. 115-116).
É o Rio moderno que encontramos, apesar da capa nos induzir
ao contrário: “Talvez o Rio também se
torne uma dessas cidades onde não se lêem livros mas se sabe de cor 85 tipos de
sashimi” (p. 122).
E, se a modernidade tem destas coisas, termino com a visão
realista do narrador. No Rio ou em Lisboa, uma imagem que serve para qualquer
parte do mundo:
“Olhava as fachadas
dos shoppings, na janela do ônibus, e pensava que eram apenas isso, fachadas,
atrás não havia nada. Uma cidade faz de conta […]” (p. 186).
Sines, 17 de Abril de 2013
Joaquim Gonçalves
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