Que importa a fúria do mar
Ana Margarida de
Carvalho, Teorema, Maio de 2013
Inquietantemente surpreendente ou surpreendentemente
inquietante, poderão ser duas formas de, de uma forma muito, mas muito
sintética, classificar o primeiro romance de Ana Margarida de Carvalho.
Com um início que não desmerece de Alves Redol ou Soeiro
Pereira Gomes, mesmo Manuel da Fonseca, cedo a Autora nos traz para o mundo
actual dominado pelas pressas das agendas dos meios mediáticos e pela pobreza
do entretenimento televisivo.
Em “Que importa a fúria do mar” cruzam-se as histórias de
Eduarda, jornalista, no dilema entre a vontade da grande reportagem e a
obrigação da rotina da redacção, e Joaquim, um dos revoltosos que, nos anos 30,
afrontaram o regime da Marinha Grande ao fundarem uma comuna na vila vidreira,
sendo, depois, presos e deportados para Cabo Verde onde inauguraram a
cadeia-inferno do Tarrafal.
Tendo como base romanesca a paixão de Joaquim por Luísa, que
ficou na terra e a quem ele escreveu cartas que, só por um acaso, lhe poderiam
chegar às mãos, o livro passeia-se ainda pela dicotomia entre a juventude e a
velhice. Eduarda, para conseguir algum relato de Joaquim quase tem de se mudar
para sua casa, com gato e tudo.
A estória, porém, inicia-se com um personagem que,
assumidamente, só aparece no primeiro capítulo. Ou talvez não… Filho dos tempos
e da terra, monologa de uma forma duramente romântica:
“Ando aqui a ganhar a
morte. A vergar-me a cada passo, nesta rabugem vegetal, com involuções de
ouriço-caixeiro, Se me tocam, eu abro pico em todas as frente. Que eu nunca
pedi nada. Nunca enclavinhei a mão para dar um murro na mesa. Nem me caberia
esmurrar a mais dilecta peça de mobiliário da casa. Onde os manjares eram
pousados de mansinho e arrebatados em silêncio, aspirares de esganação e
respeito – e, no final, as migalhas ajuntadas e receosamente pinçadas entre o
indicador e o polegar” (pp. 11-12).
Sem romantismo são os relatos no campo do Tarrafal onde a
dor, a angústia, são combatidos com a esperteza, o alheamento, a amizade, até.
Mas, até aí, há traições. A solidariedade da população não é esquecida.
“Aquelas barracas eram
a única coisa que tinham, ali dormiam, comiam, jogavam cartas, liam e os
moribundos morriam, ainda que a condensação da respiração dos homens fizesse
formar gotas de humidade no tecto que às vezes se despregavam em cima das
cabeças. Gordas, glutinosas, lesmas em estado líquido. Mas estes remadores de
galés, agrilhoados e ferroados pelo chicote, não podiam deixar ir as velas com
o vento. Eram homens, ainda não ratos” (p. 173).
Mais um livro que faz jus à literatura. Para que a memória
nos ensine a construir um mundo melhor.
Sines, 30 de Maio de 2013
Joaquim Gonçalves
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