Monday, April 18, 2016

Bem-vindos a Esta Noite Branca


Bem-vindos a Esta Noite Branca
Gonçalo Naves
Edição de Autor, 2016

Estava atrás do balcão da livraria quando entra uma cliente que, embora habitual, com quem não tinha tido, até ali, grandes conversas que não fossem de relação livreiro/cliente.

- Ó Joaquim, peço desculpa pelo assunto mas eu venho pedir-lhe ajuda. É que o meu filho Gonçalo diz que está a escrever um livro – está a escrever um livro! – já me deu a ler uns bocados e eu estou assustada! Não sei o que fazer! Acho que aquilo é de mais para a idade dele, só tem 18 anos!

Assim começou a minha relação com este Bem-vindos a Esta Noite Branca e o estreitar de relações com o Gonçalo e com a Ana Naves, sua mãe.

A partir do momento em que abri o livro outro elemento se juntou à família - Vasco Guerreiro Soares – personagem transversal à história, catalisador de atenções e cuidados, motivo de zangas e traições. No meio de uma família disfuncional – uma família típica, portanto J - é-nos apresentado aos seis meses de idade e crescemos com ele.

Se explicação é necessária para a anomalia familiar, está logo na primeira página:

“O peru já na mesa e único sinónimo para família junta” (p. 8)

Antes de continuar, permitam-me que faça apenas um breve aviso: se esperam encontrar neste livro um romance, uma história daquelas que dava um filme, não se iludam.

O que me parece que o Gonçalo quis fazer foi dizer coisas. Dizer coisas resultantes da sua acutilante observação do mundo e da rotina que o rodeia. De modo a conseguir passar isso, inventou uma história que enroupasse esse ensaio “cronicado”. E inventou muito bem!

Há quem não goste que um autor seja protagonista ou tenha voz na história alegando que, dessa forma, lhe causa algum ruído. Mas Gonçalo Naves intervém sem que o ruído se sinta. É, aliás, nos apartes, espalhados entre-parêntesis, que o autor se manifesta. E fá-lo, quantas vezes, a brincar com as palavras. O rasto da mensagem perdura. Não se inibe, mesmo, de chamar o leitor à liça, como que o convidando a participar na realização do enredo, sacudindo algumas das suas angústias imaginativas.

Reparem:

“(o problema da angústia destas personagens em colisão umas com as outras e sem entendimento suficiente umas para as outras. Todas elas estruturas concebidas sobre fundações de confiança escassa. Todas elas abanando por tudo o que é lado e por isso cada uma delas ignorante em relação às outras e a tudo. A personagem principal talvez o espaço (o espaço sem dúvida) em que existem porque, se bem virmos, é esse espaço que as regula e lhes dá a vida tão necessária para continuarem em colisão. E esta escrita tão dura porque inventar pessoas, que coisa mais difícil. Mas de criador nada tenho. A maneira como as palavras se constroem e vão dando entrelinhas a pessoas inventadas é-me um mistério. Vou guardando afeição por algumas delas. E depois o tempo a criar-se, dá-me continuidade e coloca-se responsável por tudo o que é detalhe. Uma corrente de ar e não tarda eu doente de cama. Melhor assim porque se eu doente de cama talvez as personagens doentes e se as personagens doentes de cama talvez incapazes de continuarem em colisão. Agora um cão tão bonito a queixar-se da velha infância que nunca teve. Também ele um mar em forma de silêncio, algumas pétalas descaídas pelos membros. Escrevo porque lhe escuto o deserto. Acompanha-me os dedos que correm cada vez mais rápido e vê-me o vómito em forma de desrespeitos à gramática. As personagens e os livros com particularidades. Ganham vida e constroem-se de forma independente de mão alheia. Começam a ter vontade própria e aí já nada a fazer, observar apenas, que nada melhor há. Na cozinha chora-me a Inês e na sala o João sem ver importância nisso. Têm filhos, pais e uma casa que só é possível porque o preto da tinta e o branco da página têm tamanha perfeição no contraste. O autor que nunca o foi perde o poder que nunca teve e passa a ser um espetador (espetador que estranho isto), um leitor no meio de todos os leitores. Eu assim neste momento. Não posso ter mando no que escrevo.)” (P. 44)

Se no jantar de Natal com que começamos o enredo nos são apresentados os elemento principais da família, esta vai sendo acrescentada ao longo das páginas, somando-se ainda os amigos, alguns dos quais que, de tão próximos, se confundem… ou não. Nalguns casos ficamos a pensar que “ali há gato!”. Mas, isso, deixo-vos para a leitura.

Do médico ao mecânico, sucedem-se personagens que, de tão bem retratadas, puxam a obra para um realismo tantas vezes esquecido. Senão, vejamos se não conhecemos de qualquer lado este mecânico:

“Mas o mecânico, de quem estava eu falando, mestre Salgado como o tratavam (alto, cabelo preto, um nariz desproporcional, mãos de quase meio metro), não mudou de lugar a oficina. Era um homem vivido (aprendi esta expressão com o meu pai, ele que mal vê um homem com que se lhe simpatiza a inteligência é esse o primeiro dito que diz, é um homem vivido) não mais que sessenta anos, menos que cinquenta com certeza que também não, fato de macaco sujo de tinta e suado de pneu. Ninguém o tinha como grande culto para os saberes das literaturas e das matemáticas e essas coisas inerentes a doutores mas de jipes nada havia que não soubesse. Dominava motores e arriscava-se em pinturas mirabolantes, com vários tons de luminoso. As feições tinha-as mas estragadas, queimadas pelo tempo, será a solidão um lugar que cansa e onde as noites custam a passar. O andar tinha-o esquisito e fazia questão de mostrar aos que menos conhecia um lenho já em cicatriz na barriga da perna. Marcas de guerra para sempre ficam, no físico e no psíquico, quem lá esteve que me confirme ou me desminta. Fizeram-nos uma emboscada, pá. Os pretos apareceram em magote e começaram a disparar, pá. Um tiro acertou-me nesta perna e senti o ventinho de outro rasar-me a orelha, pá. Consegui andar dali p’ra fora e andei fugido quase duas semanas. Guerra não é p’ra meninos minha senhora, todos estes ditos dele oriundos, que já se viu de ter sido belo frequentador da já nossa conhecida Universidade da vida.” (P. 23-24)

Se isto é realismo, também há magia em Bem-vindos a Esta Noite Branca, história onde até os mortos falam.

Mas, sobretudo, é com a realidade dos dramas do nosso desgraçado quotidiano que Gonçalo Naves se preocupa. Desgraçado, digo bem. Basta entrar na intimidade desta família, ou no hospital, ou no lar de idosos.

Não julguem que a juventude do Gonçalo não se nota no livro. Mas, a traição conjugal, o machismo, o aborto, os sem-abrigo, a velhice (!) são abordados por este jovem, agora já crescido de 19 anos, com uma maturidade impressionante. Onde é que ele viu tudo isto, onde é que viveu tudo isto para, de caneta em punho, nos chamar a atenção para o mundo?

A viagem para o branco. Ai, querem branco?

“Eram as paredes brancas e havia um cheiro a cadáver envenenando a cara de quem lá fazia entrada. A primeira sala por que passava António até alcançar o quarto da mulher era um sítio com uma infinita extensão de branco. Retangular, para dez metros de branco uma porta cinzenta que dava caminho para sítio desconhecido. Fria e feia e, quando se abria, mais camadas de branco infinito trazia. Na sala havia uma mesa também retangular e várias cadeiras em volta, nas cadeiras sentavam-se velhos, velhos caducos, podres, prontos para deitar fora. Nunca estava Marta entre essa velhice, seria especial, deles se destacando, pelo melhor ou pelo pior nunca haverá conhecimento. Todos os velhos imóveis, sentados, os olhos apedrejados de passado. Não se percebia que tipo de velhice tinham derivado a serem demasiado naturais dentro dela. Em redor da mesa eram uns sete sentados, o tronco curvado, as mãos tremendo, um havia que se destacava. Vestia um casaco preto perfeitamente limpo, os bolsos a transbordarem de memórias, nem um único ponto em que perfeição não estivesse presente. No cocuruto da cabeça ainda lhe resistiam alguns cabelos brancos que, envergonhados, com as paredes se confundiam. Faltava-lhe força para demonstrar fraqueza, todos eles eram sós mas aquele velho seria mais só que os outros. Sempre que António passava por aquela sala fixava-se o velho nele e, perturbado, desviava António o olhar assemelhando-se assim a homem louco, tudo em volta olhava menos o velho e assim evitando dar de frente com a morte que carregavam aqueles olhos. Tentava o velho seguir-lhe o olhar mas já para aquilo não tinha andamento, compreende-se as consequências da avançada idade, não será assunto de desprimor. O impasse só cessava com o olhar do velho perdendo-se onde já não havia entendimento.” (P. 84)

Bem-vindos a Esta Noite Branca. Que metáfora!

“Todos os velhos imóveis, sentados, os olhos apedrejados de passado” (p. 84).

Grândola, 9 de Abril de 2016
Joaquim Gonçalves


(Texto lido na apresentação na SMFOG - Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense)

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