Salão Portugal,
Vítor Serpa, D. Quixote,
Fevereiro 2008
“A minha vida dava um livro”. Quantas vezes já ouvimos ou, quiçá, dissemos esta frase? Depois… Depois, falta-nos o tempo, a arte, a imaginação mas, sobretudo, a memória. Quando paramos para pensar no passado distante chegamos à conclusão que nos lembramos quase sempre das mesmas coisas – as nossas coisas.
Vítor Serpa vai mais longe. Para além de se lembrar dele e dos seus, recorda-se dos outros, dos locais, dos usos, da aldeia que era o seu bairro de Belém, em Lisboa. Lembra-se, também, do modo e modas de falar. Há muitos anos que me esqueci de termos como “o cano das pernas”. Pois, então! Uma canelada podia partir o “cano” da perna!
Nascido em 1951, o jornalista que frequentou Medicina, agora director de um jornal desportivo, passou em Lisboa o que passei numa vila pequena, quase aldeia grande. As diferenças sociais, o paternalismo, a varina de chinela no pé, as vizinhanças, o encanto dos bonecos na montra da loja (da Dona Vitória). E que imaginação Vítor Serpa coloca nas suas descrições!... Não se esquecem facilmente personagens como o Senhor Fonseca que, até à morte, viveu uma vida dupla de droguista e inventor de cores. Até ao fim tentou combinar pós para encontrar “a cor perfeita”. Este conto, o décimo terceiro dos quinze que completam o livro, é um poema.
Depois há os pretos da época: Matateu, o preto da Casa Africana e o preto das queijadas de Sintra. Cada qual referência geo-estratégica. Leila, a menina do trapézio por quem o protagonista se apaixonou, até que uma bela manhã o circo desapareceu, como que por encanto…
“O Salão Portugal era a cara chapada do país. Pequeno mas bonitinho. Aqui e ali com um estilo pesado de mármores e veludos, próprios à memória histórica de um passado grandioso. O povo na plateia, lá em baixo, cadeiras de madeira desconjuntadas, portas abertas ao intervalo para um pátio térreo, nunca sol, muros altos sem horizontes à vista, um odor acre de urinas misturadas de homens e de burros. A classe media no balcão, mais a nível, cadeira estufada, bufete para damas e cavalheiros, lustres no tecto, paredes iluminadas com imagens apetitosas da Garbo, da Bacall, da Loren; do Bogart, do Brando, do Curtis. A classe alta, sempre mínima e familiar, nos camarotes. Gordas mulheres, gordas crianças, cus largos nos cadeirões de estilo, veludos rubi, o espaço delimitado, protegido, insular, por isso distante” (pp.36-37).
O Salão Portugal era o País. Este livro é a memória. A boa memória. Do país e da nossa infância.
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