Wednesday, March 12, 2008

Salão Portugal



Salão Portugal,

Vítor Serpa, D. Quixote,

Fevereiro 2008


“A minha vida dava um livro”. Quantas vezes já ouvimos ou, quiçá, dissemos esta frase? Depois… Depois, falta-nos o tempo, a arte, a imaginação mas, sobretudo, a memória. Quando paramos para pensar no passado distante chegamos à conclusão que nos lembramos quase sempre das mesmas coisas – as nossas coisas.
Vítor Serpa vai mais longe. Para além de se lembrar dele e dos seus, recorda-se dos outros, dos locais, dos usos, da aldeia que era o seu bairro de Belém, em Lisboa. Lembra-se, também, do modo e modas de falar. Há muitos anos que me esqueci de termos como “o cano das pernas”. Pois, então! Uma canelada podia partir o “cano” da perna!
Nascido em 1951, o jornalista que frequentou Medicina, agora director de um jornal desportivo, passou em Lisboa o que passei numa vila pequena, quase aldeia grande. As diferenças sociais, o paternalismo, a varina de chinela no pé, as vizinhanças, o encanto dos bonecos na montra da loja (da Dona Vitória). E que imaginação Vítor Serpa coloca nas suas descrições!... Não se esquecem facilmente personagens como o Senhor Fonseca que, até à morte, viveu uma vida dupla de droguista e inventor de cores. Até ao fim tentou combinar pós para encontrar “a cor perfeita”. Este conto, o décimo terceiro dos quinze que completam o livro, é um poema.
Depois há os pretos da época: Matateu, o preto da Casa Africana e o preto das queijadas de Sintra. Cada qual referência geo-estratégica. Leila, a menina do trapézio por quem o protagonista se apaixonou, até que uma bela manhã o circo desapareceu, como que por encanto…

“O Salão Portugal era a cara chapada do país. Pequeno mas bonitinho. Aqui e ali com um estilo pesado de mármores e veludos, próprios à memória histórica de um passado grandioso. O povo na plateia, lá em baixo, cadeiras de madeira desconjuntadas, portas abertas ao intervalo para um pátio térreo, nunca sol, muros altos sem horizontes à vista, um odor acre de urinas misturadas de homens e de burros. A classe media no balcão, mais a nível, cadeira estufada, bufete para damas e cavalheiros, lustres no tecto, paredes iluminadas com imagens apetitosas da Garbo, da Bacall, da Loren; do Bogart, do Brando, do Curtis. A classe alta, sempre mínima e familiar, nos camarotes. Gordas mulheres, gordas crianças, cus largos nos cadeirões de estilo, veludos rubi, o espaço delimitado, protegido, insular, por isso distante” (pp.36-37).

O Salão Portugal era o País. Este livro é a memória. A boa memória. Do país e da nossa infância.

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