Lavagante,
José Cardoso Pires, Edições Nelson de Matos, 2008, 10,00€
“Então expliquei-lhe que o lavagante é principalmente um animal de tenebrosa memória, paciente e obstinado, e terrível nos seus desígnios. Contei-lhe como ele serve o safio que está nas tocas submersas levando-lhe comida a todas as horas, e como a sua existência anda presa a essa serpente estúpida de grandes sonos, vendo-a engordar, engordar, até saber que a tem bloqueada, incapaz de sair do buraco porque o corpo cresceu demais, enovelou-se e não cabe na abertura por onde podia libertar-se. “Nesse momento, fica sabendo, o lavagante servil aparece à boca da toca do safio mas já não traz comida. Vem de garras afiadas devorar o grande prisioneiro que alimentou durante tanto tempo”.É uma fábula, pois! O texto inédito de José Cardoso Pires agora publicado pela novel editora Nelson de Matos, ao contrário do que muitas vezes acontece – quando por obra e graça do Espírito Santo aparecem textos não publicados em vida pelos seus autores – este é mais um excelente trabalho de Literatura Portuguesa associado a uma história com todos os condimentos habituais em Cardoso Pires: um humor subtil, a crítica social sem heterodoxias, personagens e locais que respiramos como verdadeiros. Isso faz os mestres.
Outros autores dariam voltas nas respectivas tumbas ao publicarem-lhes, depois das suas passagens, obras que eles não quereriam que saíssem a lume. Acredito que isso não aconteceria com Mestre Cardoso Pires em relação a
Lavagante, até porque já uma versão reduzida fora publicada em 1963 na revista
O Tempo e o Modo, como sendo um capítulo de um próximo romance. Até 1968 o texto foi sendo trabalhado pelo Autor e foi a partir das folhas por ele dactilografadas que se chegou a este livro, com o apoio de sua mulher e filhas.
A acção de
Lavagante passa-se mesmo no início dos anos sessenta, portanto, à época em que a novela foi escrita, com a crise académica, um médico alinhadinho que acaba por ser preso, a namorada que tem um caso com um PIDE, e sempre a Lisboa que José Cardoso Pires tão bem viveu e nos fez viver.
Lavagante é, sem dúvida, um livro a ler hoje, daqui a uns tempos e mais tarde.
No início dizia que ”é uma fábula”. Termino a afirmar que é fabuloso!
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