Monday, May 10, 2010

A arte de morrer longe

A arte de morrer longe ****
Mário de Carvalho

Não me é fácil falar de Mário de Carvalho, como não é fácil falar de amigos. Julgamos que temos muito para dizer mas, na hora de abrir a boca, a normalidade que para nós são as coisas boas tolhe-nos o discurso e ficamos para ali a abrir e fechar a boca como peixe fora de água.

Quem não está fora de água, se considerarmos como água a língua portuguesa, é o escritor Mário de Carvalho. Desde o primeiro livro seu que li – “Era uma vez um Alferes” – que tenho perseguido a sua obra – primeiro, sistematicamente, agora, logo que sai um novo romance, deixo as outras leituras para trás.

Tive até o privilégio de assistir à entrega do Grande Prémio de Romance e Novela da APE/IPLB, em 1994, pelo fabuloso “Um deus passeando pela brisa da tarde” que, aliás, foi alvo de várias reedições e agraciado com mais uns quantos prémios.

Gostando de diversos outros autores portugueses, e com o devido respeito por eles, considero Mário de Carvalho como que um guardião da nossa língua, na esteira de Vergílio Ferreira ou José Cardoso Pires.

Para além disso, O autor de “A arte de morrer longe”, seu último romance e que nos traz aqui hoje, é um observador acutilante. Pega nas suas observações do quotidiano, os usos, costumes, as manias, embrulha-as com uma muito própria dose de humor, umas vezes crítico, outras, verrinoso, e serve-nos uma prosa tão deliciosa e simples que até faz parecer que é fácil escrever assim.

Vejamos, como exemplo, este pequeno excerto:

“Pouco conhecia do universo dos mestres-de-obra e a revelação dalgumas subtilezas, até então insuspeitadas, da língua portuguesa, tê-la-iam deixado muito insegura. «Dez da manhã» a querer dizer «meio-dia», «amanhã» a querer dizer «para a semana» e «para a semana», «nunca mais», «com certeza» a querer dizer «não», «garanto» a querer dizer «nunca», «compromisso» a querer dizer «rábula» e «palavra de honra» a querer dizer «’tá bem abelha, eu bem te lixo».

Quem não pensou como Mário de Carvalho? Não parece tão fácil escrever isto? Vejamos outro exemplo. Neste caso trata-se da loja de ferragens onde trabalha como escriturária Bárbara, personagem do romance. Poderia ser outro estabelecimento! O importante, acho, é a forma como Mário de Carvalho descreve um ambiente que é estranho ao visitante. Vejamos:

“As lojas de ferragens têm habitualmente uma clientela especificadora e miudinha, ávida de explicações circunspectas, muito apreciadora de pormenores de dimensão, composição, robustez, cor e tacto. Esses pormenores fazem o desespero do freguês ocasional, que vem comprar um parafuso ou uma dobradiça para o armário. Ao longo de um balcão corrido, num ambiente tristonho e escuro, acumulam-se os profissionais, vestidos de fato-macaco manchado de óleo, ou velhas batas repassadas de tintas secas e têm longos conciliábulos, em voz baixa, soturna, com enumeração meticulosa de números, marcas e medidas: «Não, vá-me mas é buscar uma Volgen, não, uma Grüber de 14 com 3 polegadas»; «Ná, assim você não resolve isso»; «Então, pronto, Uma de 11 e meio, para fazer cama com o entalhe de trezentos»; «Ah, está bem, assim não digo nada. Mas parece-me que só tenho de quinze. Vou ver…» E o pobre do burguês à espera, abatido por tanta ciência, no desconforto de apenas querer a porcaria da dobradiça ou do parafuso para a trela do cão e a olhar aterrorizado e cheio de respeito para um balcão cheio de peçazinhas, negruras retorcidas, latões, bornes, fios eléctricos, anilhas, trapalhadas, cada qual com o seu nome, marca, dimensão, cor e propósito, prontas a desfilar em frente de cada freguês concentrado e sabedor”.

Se, como vimos, na descrição dos ambientes quase só nos faltam os cheiros, a caracterização de personagens não fica atrás. Quem não consegue visualizar “um tipo de português largo e inflado, ovante e intrusivo, propenso à calvície, com sobrancelhas de escovilhão, riso beiçudo, pelame encaracolado em todo o corpo, amador da piadola e da pirraça, grosseiro para os mais fracos, airoso para os superiores, em absoluto impenetrável a noções básicas de decência e decoro? Uma figura digna das Metamorfoses [de Kafka], em que se hibridam o entranhado lanzudo e o atávico malandrim? Não descortina? Então é porque este Quintão Malpique era uma raridade e convém examiná-lo de perto como espécie singular”.

A partir daqui Mário de Carvalho delicia-nos com as prosas mais hilariantes do livro: “Esses senhores o que querem é repimpar-se!!! É só mama!! Banquetes de lagosta, em nice e em Cannes, aproveitando os favores do Estado e o dinheiro dos contribuintes. Isto é tudo sempre no poleiro a chuchar no orçamento, à custa do Zé Povinho, e a gastar os nossos ricos carcanhóis com filmalhadas que ninguém percebe nem ninguém vê. Topam?”

Enfim, a vontade é continuar para aqui a falar deste “A arte de morrer longe”, onde não faltam as novas tecnologias - as redes sociais – Facebook e Twiter e até a dona de casa que já vai na letra C das receitas de culinária.

A história do livro até é a de um casal que se está a separar e, feitas as partilhas, não sabem que destino dar a uma tartaruga que sobra.

Mas o mais importante não é a história mas a forma como ela é contada.

SINOPSE:

Situemo-nos num quadro familiar, comum aos nossos dias, de um jovem casal citadino, a viver lá para os lados do Lumiar, frequentadores da Avenida de Roma: «Chamavam-se Arnaldo e Bárbara, andavam pelos trinta anos, eram empregados de escritório, e cada qual estaria, segundo informação mais aludida que confessada, “interessado” n’outrem.» A decisão sobre que destino dar a uma tartaruga doméstica acompanha o quotidiano deste casal desavindo, funcionando como o último elo de ligação à espera de uma solução jeitosa. A solução tarda, e entretanto o casal vai vivendo com partilhas comuns mais ou menos agrestes.

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