Monday, May 17, 2010

As rectas são uma seca

As rectas são uma seca **
Vítor Norte

- O que é que estás a fazer?
- Estou a fazer!... disse eu.
- Estou a fazer coisas!
Por acaso tinha apenas ido buscar a caneta e o bloco para escrever estas linhas.
Ela estava habituada a que eu fosse famoso. Ou talvez não!… Aquela coisa de eu ser famoso, se calhar, até a incomodava!
E perguntou o que é que eu estava a fazer.
Se calhar porque, fizesse eu o que fizesse, atendendo à minha notoriedade pública, isso interferia com a nossa intimidade. Com a cumplicidade para além da porta fechada. Com aquela coisa que, apenas depois de alguns anos de vida - e de vida! – nos apercebemos que temos: uma vida para além da porta fechada.
É que, até lá, isto é, durante parte do nosso amadurecimento… Chiiii – amadurecimento!... ao que eu cheguei… Mas, pronto, vá lá, até determinada altura da nossa vida andamos, feitos parvos, a trabalhar para as aparências. Mas, depois disso, estamo-nos marimbando para as “aparas” e muito mais para as “ências”.
Chegado aqui, e antes de divagar mais, o que importa é reter o que cautelosamente ela estava a tentar preservar – a vida do “eu” ou, vá lá, a vida do “nós”, perante a ameaça, sempre velada – ou descarada! – da vida pública do nós, vós, eles, todos, o público. O mundo. O “eu” virado do avesso.
Chiiii! E começa a ser complicado! Falo dela, falo de mim. Eu. Eu, que estou para aqui a tentar dizer qualquer coisa que não seja ensaiado. Qualquer coisa saída de mim. Sem que me ponham um papel à frente. Ensaiado.
Mas insisto! E quero dizer! Respiro fundo.
Bebo uma cerveja… ou não. Um copo de vinho.
Fumo um charro.
Não.
Posso beber uma coca-cola.
Porra! Ou nada disso!
Respiro, simplesmente, sem que me digam o que devo respirar.
Sem duplos.
Sem takes.
Sem charriot a perseguir-me o cansaço.
Mas é tudo isso que me vai empurrando, empurrando até ao livro que estou a ler – agora – (ando a ler, pronto!) que fala do artista, solitário, num quarto de primeiro andar com vista para um néon que pisca a noite toda…
Mas isso é nos filmes.
Aqui, sou eu. Só eu.
Eu, a tentar fazer o impossível – passar para aia experiência da vida. Da vida daqui, e da tela, e do ecrã, e do sonho, e da ilusão. Sou capaz?
Que importa isso? Aproveitem, se quiserem. Eu, cá por mim, faço a minha parte.
Pronto – desembuchei!
Agora, se quiserem, leiam “As rectas são uma seca”, livro do actor Vítor Norte.

Post Scriptum:

Na página 103 o Vítor diz assim: “Às vezes, nem sabemos o que dizemos – sons apenas? Gestos que não condizem? Quantas vezes somos bonecos?”
Isto diz o Vítor Norte no livro dele. Cá por mim ele descobriu-me a careca: fingindo, sou eu que engano “o rasto no ar de quem não toca no chão, a luz da estrela que nunca vai chegar”.

Antes que me vá embora, deixo-vos aqui só mais este excerto de beleza solitária:

“Recortei do jornal uma fotografia do Charlot sem bigode e colei a cara dele com quatro selos na parede do quarto. Não tinha cola, mas por sorte tinha selos.
Ficou colado na parede aos pés da cama, para o ver logo ao acordar. De manhã, antes de sair para filmar, descolo os selos e tiro a fotografia para a guardar religiosamente na kitchenette que não uso.
Mas à noite, quando regressar, vou colá-la outra vez, com outros selos virgens, mais fortes em termos de cola. Enquanto tiver selos, nunca vou estar sozinho, pois tenho o Charlie Chaplin a fazer-me companhia.
E quando faço exercícios de mímica engraçados e o olho de repente, até parece que ele se ri. Rimos os dois e assim bem-dispostos, vai passando o tempo, em stand-by.”
(p. 106).

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