Saturday, May 22, 2010

O viajante do século

O viajante do século *****
Andrés Neuman
Alfaguara
Prémio Alfaguara Romance 2009
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“Muito foi o que sentimos um pelo outro,
tivemos contudo uma exacta harmonia.
Muitas vezes fingimos ser um casal
sem ter de sofrer tropeços ou rixas.
Divertimo-nos juntos, gritámos com alarde,
Demos doces beijos e trocámos carícias.
No fim decidimos, com infantil prazer,
brincar às escondidas pelos bosques e campos.
Conseguimos assim esconder-nos tão bem
que nunca mais voltámos a encontrar-nos.”
(pág.435-6)

Se quiséssemos resumir a principal história de amor contida em “O viajante do século”, este excerto de um poema do alemão Heinrich Heine seria uma boa opção.

Mas, histórias de amor, há mais do que uma no livro de Andrés Neuman. Aliás, todo o romance é uma grande história de amor, repartida por vários quartos ocupados por personagens soberbamente caracterizados física e psicologicamente.

A acção passa-se na Alemanha, num século XIX que, dadas as características políticas e sociais da época, por vezes nos engana. Este início de século XXI não é, em mais do que se possa pensar, tão diferente como isso: As influências que ditam as vidas; a exploração, por vezes esclavagista, do mais fraco pelo mais forte ou, pelo menos, mais influente; o grande abismo entre ricos e pobres; os preconceitos de classes que teimam, apesar da sua falência, em eternizar modos de vida que já não têm capacidade para manter. Mas também o romantismo, a tradição e os novos ventos do modernismo que trazem o sindicalismo e novas correntes filosóficas, por exemplo.

Acerca de um assunto que, actualmente e a título de exemplo, é motivo de muita conversa, vejamos o que Neuman, através de um dos seus personagens, diz a respeito do livro objecto:

“O problema, opinou o professor Mietter, é que se imprimem demasiados livros. Hoje, qualquer um se acha capaz de escrever um romance. Uma pessoa, que já vai para velha […] ainda se lembra da época em que conseguir um livro era uma aventura, que não a desses cavaleiros medievais!, a aventura era ter um livro entre as mãos. Valorizávamos então cada exemplar e exigíamos-lhe que nos ensinasse algo importante, algo definitivo. Hoje as pessoas preferem comprar um livro a compreendê-lo, como se comprando livros nos apropriássemos do seu conteúdo" (pág. 170).

Sendo a personagem principal tradutor, não são de estranhar as diversas referências aos livros:

“[…] vemo-los empilhados numa biblioteca e gostaríamos de abri-los a todos, saber ao menos como soam. Pensamos que poderemos estar a perder algo de importante, vemo-los e intrigam-nos, tentam-nos, falam-nos de quão pequena é a nossa vida e de como poderia ser imensa” (pág. 119).

Neste livro do argentino que, muito novo, foi viver para Espanha, há de tudo o que se possa pedir a um bom livro. Até a magia literária sul-americana, se atentarmos à cidade que muda as suas referências – a esquina por onde ontem passámos, hoje já está do outro lado. A cidade labiríntica de onde não é fácil sair. Também o mistério, também o policial. E uma capa lindíssima com um velho tocador de realejo a posar com o seu instrumento num enquadramento de cidade tipicamente alemã. O tocador de realejo é mesmo um dos personagens fortes da história. É o filósofo que vive numa caverna em contraponto aos burgueses que discutem filosofia em conversas de salão. Não tem outro nome senão “o velho tocador de realejo” mas o cão que o acompanha para todo o lado, que dorme com ele e com quem conversa, chama-se Franz.
A música é a sua vida:

“Vou-te contar um segredo, disse o velho: quando o realejo toca e a tampa está fechada, imagino sempre que o alvoroço não vem das teclas, mas das personagens das canções. Imagino que essas personagens cantam, riem-se, choram, que correm entre as cordas de um lado para o outro. E assim toco melhor. Pois digo-te, Hans, que há vida lá dentro. Quando fechas a tampa, há vida lá dentro. É quase um coração. E, quando fico em silêncio, lembro-me tão bem do som do realejo que às vezes demoro a dar-me conta se estou a tocar ou não. A música já está aqui, na minha cabeça, e não há nada a fazer. No fundo, tocar não é importante, sabes?, o importante é ouvir. Se ouvires, há sempre música. Todos trazemos música. Até os que passam pela praça e nem sequer olham para mim, também esses a trazem. O som dos instrumentos serve para isso, para a recordar” (pág. 153).

Mas há mais. Literatura, muita literatura. E aprendemos a ler. E discutimos com as personagens. Literatura ou filosofia. E religião. Atrevemo-nos a discutir - o amor.

“As paixões perdem-nos, sabe porquê?, porque lhes damos tudo o que temos, o que demorámos meia vida a conquistar, por uma recompensa que dura muito pouco. Mas depois dessa paixão há que continuar a viver […] aconteça o que acontecer! No fim, a única coisa que temos é aquilo que, por vezes, recusamos: a família, os amigos, os vizinhos. Não há outra coisa que dure” (pág. 457).

Não é fácil apaixonar-me por um livro. Dar-lhe o braço para todo o lado, conversar com ele, olhar para a capa como para a foto da pessoa amada. Dormirmos abraçados. Reaprender o amor com Sophie e Hans. Viajar pela história, música, literatura como sendo o protagonista.

Sei que isto é conversa de apaixonado mas, quando acabar a leitura, vou querer comprar um realejo.

1 comment:

SEVE said...

O meu amigo diz que não é fácil apaixonar-se por um livro, ora bolas todos os comentários que aqui li, não há um (um ao menos para amostra) que não diga que é imperdível...sei que das coisas mais difíceis é ser intelectualmente honesto, ou seja dizer-se precisamente o que se está a pensar.

Perdoa-me a ousadia e não me leves a mal, mas não sou japonês...

Um abraço