Friday, September 10, 2010

O Bom Inverno

O Bom Inverno ****
João Tordo
D. Quixote
Setembro 2010

“Prefiro pensar nessa noite como um fragmento da minha imaginação e não como uma coisa real” (p.204).

“Pusemos o homem dentro do cesto do balão e deixámo-lo desaparecer no céu pálido do Lácio” (p.11). É assim que João Tordo dá início a este seu quarto e excelente romance. Depois de O livro dos homens sem luz, que se passa em Londres, Hotel Memória, com acção em Nova Iorque e As 3 vidas, situado maioritariamente no Alentejo, precisamente em Santiago do Cacém, o autor viaja agora, vindo de Budapeste, para a pequena localidade italiana de Sabaudia. É aí, no meio de um bosque, que as várias personagens espelham do que o ser humano é capaz em situação desesperada.

“Procuramos razões […] para o mal. Um idiota não tem razões e, portanto, é geralmente considerado inocente” (p. 205) diz Nina para o narrador. Ao longo das quase 300 páginas do romance que, embora pareça, não é policial, não se encontram tais razões.

Encontram-se, sim, razões para ler e não parar. No meio do mistério o Autor consegue meter texto poético e até uma cena misteriosa e subtil de sexo em que uns lábios o vão visitar, noite após noite, por debaixo dos lençóis e que nos acompanha até à última página.

João Tordo descreve e caracteriza perfeitamente as personagens e cenários, numa escrita cinematográfica cujo primeiro ponto alto é a chegada do grupo a Itália, tal o ritmo e conteúdo dos diálogos.

Vamos lendo e abandonando o livro para nos sentarmos no sofá a ver um filme. Entenda-se que o filme é a própria leitura de “O bom Inverno”. Quero com isto dizer que nos esquecemos que estamos a ler. Estamos, sim, a ver a história. O final, então, desenrola-se a um ritmo empolgante.

“Somos nós que mantemos vivos os mortos” (p. 194), diz o narrador para Elsa. E a personagem Nina Milhouse Pascal, que já entrara em “As 3 vidas”, demonstra-nos que há sempre outras vidas para além da vida. Há como que vidas geográficas, vividas conforme o local onde nos encontremos.

Diz o narrador (João Tordo?) logo no início da história: “descobri que os romances não me dizem nada. Ou deixam de dizer, não sei. Leio-o como quem lê o jornal: sem amor, com uma leve suspeita de que o que estou a ler é um boato sem fundamento. Como se estivesse a ler notícias das coisas que aconteceram aos outros. Abre-se, fecha-se e esquece-se” (p. 34).

Não é o caso de “O Bom Inverno”.

Excerto:

“A chuva caíra toda a noite, mas a noite ainda não chegara. Nessa tarde regressei à casa debaixo de um temporal tão denso que obscureceu o caminho do bosque em meu redor, o céu invisível escondido pela água torrencial que se derramava das copas das árvores. O bosque mergulhara numa intensa escuridão e eu mergulhara nele. Quis correr, nunca desejei tanto poder correr; mas, como nos pesadelos em que não saímos do mesmo sítio, consegui pouco mais do que arrastar o meu corpo debilitado, apoiado na bengala, pela lama do caminho. Coxeei pelo bosque fora, grunhindo, desesperando, o cabelo escorrendo a água da chuva, a roupa colada ao corpo, o braço livre afastando com violência os ramos das árvores chorosas que me barravam o caminho. O meu esforço foi tão grande que as lágrimas de dor rapidamente se transformaram num riso de escárnio, e ri-me da minha figura trôpega a meio de um temporal, e ri-me de raiva, e ri-me do suor que me jorrava pelas têmporas, e ri-me do mundo e do que estava para lá do mundo, e ri-me dos deuses que pareciam zombar da minha lentidão. O Inverno chegara, afinal;” (p. 262).
Joaquim Gonçalves
10 de Setembro de 2010



Apresentação de "O Bom Inverno"

com a presença de João Tordo

livraria A das Artes

Sábado, 9 de Outubro de 2010, 16 horas

entrada livre

1 comment:

Tiago M. Franco said...

O bom Inverno foi o meu primeiro livro de João Tordo. A história está muito bem contada e é impossível parar de ler, contudo para ser sincero espero um pouco mais, o que com esta obra, no meu ver, João Tordo não questiona nada de significativo. Julgo que falta um pouco isso.