Ronda das mil belas
em frol
Mário de Carvalho, Porto, Setembro 2016
“Não há mais elegante delineio da Natureza que aquela
abençoada fenda, sulcada em macios conchegos, figurando duas mãos que rezam,
unidas ao alto, entrada de catedral, gasalho de mistério” (P.99).
Ao ler Ronda das mil belas em frol veio-me à ideia
quando uma pintora famosa me chamou ao estúdio onde provisoriamente trabalhava.
Tinha obras a meio e pediu-me para dar opinião sobre as mesmas.
Atrapalhadíssimo, olhei em volta a pedir apoio ao ar que me rodeava. Sem
sucesso. Mas o que importa para aqui é que reparei em inúmeros livros ,
alguns, autênticos calhamaços, sobre desenho, pintura e escultura anatómica,
sobretudo clássica. Disse-me posteriormente a artista que se socorria deles
para se aperfeiçoar naquela área.
Também Mário de Carvalho parece ter coleccionado, como que
numa caderneta, os cromos que vislumbrou ao longo da vida, em filmes, livros ,
conversas, boatos, sobre engates, traições, namoricos, quiçá sonhos molhados!,
para delinear de forma deslumbrante as suas personagens.
E que dizer da caracterização do “húmido santuário” ou
“Canyon secreto” de cada uma das parceiras desta ronda? Sublime. Tal como os
apontamentos anatómicos mais sensíveis ao macho.
Assumidamente um conjunto de contos eróticos, nunca a
linguagem perde a compostura. “Expressões que não me eram lembradas desde a
pornografia adolescente” (p. 22) não passam de frases como esta. Suponho que a
palavra mais ácida que vislumbrei, ácida pelo contexto, foi “crava!”, do verbo
cravar.
Uma breve nota para o índice. Não sei se deliberado mas,
numa observação atenta, qual vislumbre de cavalos alados em formações núbias,
leio ali um poema ao romance erótico, cada palavra um verso, começando em
“Calma” para terminar em “Rebate”, passando por “Proeza”, “Viravolta” e
“Audácia”, entre outros. O “Epílogo” conta para confirmar as referências
clássicas do autor, o amor à Língua.
O novo livro de contos de Mário de Carvalho lê-se de uma
penada. Não tanto pela curiosidade de espreitar pelo buraco da fechadura, mas
também!, mas, sobretudo pelo habitual primor da prosa, pelo vocabulário
emprestado que não se rende a modernices mas que, no entanto, não abdica da
modernidade.
Um livro essencial na bibliografia do grande Mário de
Carvalho.
Sines, 14 de Setembro de 2016
Joaquim Gonçalves
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