Wednesday, September 25, 2013

A desumanização



A desumanização
Valter Hugo Mãe, Porto, Setembro 2013

É a olhar para o mar que tento encarreirar algumas palavras sobre este livro.

No alto da falésia, a ouvir o marulhar da maré-baixa, lá ao fundo, ondas pequenas contra as rochas a descoberto, à minha altura gaivotas a planarem indiferentes.

É assim que tento sair de dentro da cabeça de Valter Hugo Mãe que, no resultado das suas deambulações geográficas e psicológicas, nos impôs A Desumanização, título que deu ao seu mais recente livro.

E digo livro deliberadamente. Não, romance.

Acabado de ler a olhar para as lonjuras do mar, em manhã de fim de Setembro quente, não consigo deixar a fria sensação que a fria Islândia deixa cravada na pele.

Valter Hugo Mãe esteve lá mas não apenas de corpo. Sentimo-lo nas cerca de 230 páginas, uma a uma.

A história poderia passar-se noutro local? Poderia. A história, que dá corpo ao livro, poderia. O livro, entendido como a soma de todos os conteúdos, não.

A história, aliás, é o que menos importa nesta leitura, com tanto de bom que encontramos a envolvê-la, a dar-lhe corpo, e alma, e sentido.

Ironicamente, com o título A Desumanização, a leitura só nos pode relembrar, sempre e sempre a nossa pequenez humana perante uma natureza incomensurável.

O Autor transporta-nos para o arquipélago gelado e mostra-nos a luz que lá colheu e guardou nos próprios olhos até a derramar no papel para no-la oferecer. Mas também colheu modos de vida e de relações. Relações entre as pessoas e entre estas e os animais ou a Natureza.

Poético e duro, Valter não se inibe na escrita e, com a poesia a fazer-se prosa, saindo-lhe pelas pontas dos dedos de uma mão, soca-nos no estômago frágil, a abarrotar de “comida” civilizacional, com o punho bem fechado da outra, ordens directas do cérebro que guardou sensações para as devolver, transformadas em livro.

Livro ladrão.

Como diz a menina da história humana que tem por título A Desumanização:

“Senti-me muito feia por andar atrás da beleza. Era tão diferente de fugir. O meu pai desentristeceu-me. Prometeu que leríamos um livro. Os livros eram ladrões. Roubavam-nos do que nos acontecia. Mas também eram generosos. Ofereciam-nos o que não nos acontecia.” (p.59).

Obrigado, Valter, por nos colocares nas mãos este ladrão.

Sines, 20 de Setembro de 2013

Joaquim Gonçalves

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