O Tempo do Senhor Blum e outros contos
Marlene Ferraz, Município de Montemor-o-Velho, Setembro 2013
Senta-se no chão de terra, à sombra de qualquer coisa: uma
árvore, um arbusto, à sombra das asas de uma borboleta. Olha as flores e entra
dentro delas, sorvendo-lhes a essência.
Com os olhos grandes de menina vê o mundo à sua volta e
arrecada o seu pasmo.
A Terra. O Homem. Os brinquedos estão ali, à disposição de
qualquer um. Mas nem todos os vêem.
À menina, cabisbaixa, olhos curiosos, sempre os olhos, nada
passa despercebido. O que vê e o que sabe que está para lá do visível, mas não
entende.
A aldeia. Os animais. A flora – ai as flores! – Os velhos.
Histórias de muito longe no tempo, tudo guarda numa caixinha.
Ensimesmada, fantasia o ininteligível com as vestes que
encontra ali à mão.
Pega na Terra crua, vai aprendendo a conhecer até ao amor, e
coloca lá o Homem.
Com a lâmina da curiosidade, esventra-o sob as roupas
mundanas e, à sombra da memória de ditos e subentendidos, arranca-lhe a alma
aos pedacinhos. Como algodão em rama.
Dessa alma humana ancestral escorrem, gelatinosas, letras
que a menina guarda na concha da mão como passarinhos caídos do ninho.
Acaricia-as e aquece-as com o bafo perfumado da sua inteligência.
Salvas, assim, de se perderem, a menina molda-as de noite e,
de dia, fá-las repousar ao sol. Para secarem lentamente umas ao lado das
outras, em grupos, algumas isoladas. E, assim, crescerem firmes em frases
nascidas da sua imaginação.
A menina! A menina vive naquele mundinho dentro do mundo
grande que ouve dos mais antigos. Finge que não cresce para que possa ir e vir
entre o Mundo e o seu refúgio.
E é aí que guarda os senhores, as inutilidades, os
quotidianos, a tradição, as imperfeições, o doce e o amargo.
Guarda o tempo para repartir em devido tempo. E terra. Muita
terra para dosear nas palavras que cose ao sol de uma maturidade escondida.
A menina é curiosa. Guarda o que ouve numa caixa mágica,
onde esconde as letras que lhe sobram do assalto à alma, e mistura-as com as
suas fantasias, com uma dedicada delicadeza que não chega para disfarçar a
dureza das relações. Da Vida.
Um dia, pega em todos aqueles brinquedos, coloca-os em cima
de um lençol, alinhadinhos, e dá-lhes nomes.
Vai desfazer-se deles. Sabe que pode revisitá-los mas jamais
voltarão a ser seus.
Não é, todavia, gratuitamente que a menina no entrega os
brinquedos. Marlene Ferraz sabe que, ao dar-nos a ler os seus contos, já está a
arrancar-nos bocadinhos de alma.
Para continuar o ciclo.
Sines, 12 de Outubro de 2013
Joaquim Gonçalves
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