Saturday, October 12, 2013

O tempo do Senhor Blum e outros contos



O Tempo do Senhor Blum e outros contos
Marlene Ferraz, Município de Montemor-o-Velho, Setembro 2013

Senta-se no chão de terra, à sombra de qualquer coisa: uma árvore, um arbusto, à sombra das asas de uma borboleta. Olha as flores e entra dentro delas, sorvendo-lhes a essência.

Com os olhos grandes de menina vê o mundo à sua volta e arrecada o seu pasmo.

A Terra. O Homem. Os brinquedos estão ali, à disposição de qualquer um. Mas nem todos os vêem.

À menina, cabisbaixa, olhos curiosos, sempre os olhos, nada passa despercebido. O que vê e o que sabe que está para lá do visível, mas não entende.

A aldeia. Os animais. A flora – ai as flores! – Os velhos. Histórias de muito longe no tempo, tudo guarda numa caixinha.

Ensimesmada, fantasia o ininteligível com as vestes que encontra ali à mão.

Pega na Terra crua, vai aprendendo a conhecer até ao amor, e coloca lá o Homem.

Com a lâmina da curiosidade, esventra-o sob as roupas mundanas e, à sombra da memória de ditos e subentendidos, arranca-lhe a alma aos pedacinhos. Como algodão em rama.

Dessa alma humana ancestral escorrem, gelatinosas, letras que a menina guarda na concha da mão como passarinhos caídos do ninho. Acaricia-as e aquece-as com o bafo perfumado da sua inteligência.

Salvas, assim, de se perderem, a menina molda-as de noite e, de dia, fá-las repousar ao sol. Para secarem lentamente umas ao lado das outras, em grupos, algumas isoladas. E, assim, crescerem firmes em frases nascidas da sua imaginação.

A menina! A menina vive naquele mundinho dentro do mundo grande que ouve dos mais antigos. Finge que não cresce para que possa ir e vir entre o Mundo e o seu refúgio.

E é aí que guarda os senhores, as inutilidades, os quotidianos, a tradição, as imperfeições, o doce e o amargo.

Guarda o tempo para repartir em devido tempo. E terra. Muita terra para dosear nas palavras que cose ao sol de uma maturidade escondida.

A menina é curiosa. Guarda o que ouve numa caixa mágica, onde esconde as letras que lhe sobram do assalto à alma, e mistura-as com as suas fantasias, com uma dedicada delicadeza que não chega para disfarçar a dureza das relações. Da Vida.

Um dia, pega em todos aqueles brinquedos, coloca-os em cima de um lençol, alinhadinhos, e dá-lhes nomes.

Vai desfazer-se deles. Sabe que pode revisitá-los mas jamais voltarão a ser seus.

Não é, todavia, gratuitamente que a menina no entrega os brinquedos. Marlene Ferraz sabe que, ao dar-nos a ler os seus contos, já está a arrancar-nos bocadinhos de alma.

Para continuar o ciclo.


Sines, 12 de Outubro de 2013
Joaquim Gonçalves 

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