Bem-vindos a Esta Noite Branca
Gonçalo Naves
Edição de Autor, 2016
Estava atrás do balcão da livraria quando entra uma cliente
que, embora habitual, com quem não tinha tido, até ali, grandes conversas que
não fossem de relação livreiro/cliente.
- Ó Joaquim, peço desculpa pelo assunto mas eu venho
pedir-lhe ajuda. É que o meu filho Gonçalo diz que está a escrever um livro –
está a escrever um livro! – já me deu a ler uns bocados e eu estou assustada!
Não sei o que fazer! Acho que aquilo é de mais para a idade dele, só tem 18
anos!
Assim começou a minha relação com este Bem-vindos a Esta
Noite Branca e o estreitar de relações com o Gonçalo e com a Ana Naves, sua
mãe.
A partir do momento em que abri o livro outro elemento se
juntou à família - Vasco Guerreiro Soares – personagem transversal à história,
catalisador de atenções e cuidados, motivo de zangas e traições. No meio de uma
família disfuncional – uma família típica, portanto J - é-nos apresentado
aos seis meses de idade e crescemos com ele.
Se explicação é necessária para a anomalia familiar, está
logo na primeira página:
“O peru já na mesa e único sinónimo para família junta” (p.
8)
Antes de continuar, permitam-me que faça apenas um breve
aviso: se esperam encontrar neste livro um romance, uma história daquelas que
dava um filme, não se iludam.
O que me parece que o Gonçalo quis fazer foi dizer coisas.
Dizer coisas resultantes da sua acutilante observação do mundo e da rotina que
o rodeia. De modo a conseguir passar isso, inventou uma história que enroupasse
esse ensaio “cronicado”. E inventou muito bem!
Há quem não goste que um autor seja protagonista ou tenha
voz na história alegando que, dessa forma, lhe causa algum ruído. Mas Gonçalo
Naves intervém sem que o ruído se sinta. É, aliás, nos apartes, espalhados
entre-parêntesis, que o autor se manifesta. E fá-lo, quantas vezes, a brincar
com as palavras. O rasto da mensagem perdura. Não se inibe, mesmo, de chamar o
leitor à liça, como que o convidando a participar na realização do enredo,
sacudindo algumas das suas angústias imaginativas.
Reparem:
“(o problema da angústia destas personagens em colisão umas
com as outras e sem entendimento suficiente umas para as outras. Todas elas
estruturas concebidas sobre fundações de confiança escassa. Todas elas abanando
por tudo o que é lado e por isso cada uma delas ignorante em relação às outras
e a tudo. A personagem principal talvez o espaço (o espaço sem dúvida) em que
existem porque, se bem virmos, é esse espaço que as regula e lhes dá a vida tão
necessária para continuarem em colisão. E esta escrita tão dura porque inventar
pessoas, que coisa mais difícil. Mas de criador nada tenho. A maneira como as
palavras se constroem e vão dando entrelinhas a pessoas inventadas é-me um
mistério. Vou guardando afeição por algumas delas. E depois o tempo a criar-se,
dá-me continuidade e coloca-se responsável por tudo o que é detalhe. Uma
corrente de ar e não tarda eu doente de cama. Melhor assim porque se eu doente
de cama talvez as personagens doentes e se as personagens doentes de cama
talvez incapazes de continuarem em colisão. Agora um cão tão bonito a
queixar-se da velha infância que nunca teve. Também ele um mar em forma de
silêncio, algumas pétalas descaídas pelos membros. Escrevo porque lhe escuto o
deserto. Acompanha-me os dedos que correm cada vez mais rápido e vê-me o vómito
em forma de desrespeitos à gramática. As personagens e os livros
com particularidades. Ganham vida e constroem-se de forma independente de mão
alheia. Começam a ter vontade própria e aí já nada a fazer, observar apenas,
que nada melhor há. Na cozinha chora-me a Inês e na sala o João sem ver
importância nisso. Têm filhos, pais e uma casa que só é possível porque o preto
da tinta e o branco da página têm tamanha perfeição no contraste. O autor que
nunca o foi perde o poder que nunca teve e passa a ser um espetador (espetador
que estranho isto), um leitor no meio de todos os leitores. Eu assim neste
momento. Não posso ter mando no que escrevo.)” (P. 44)
Se no jantar de Natal com que começamos o enredo nos são
apresentados os elemento principais da família, esta vai sendo acrescentada ao
longo das páginas, somando-se ainda os amigos, alguns dos quais que, de tão
próximos, se confundem… ou não. Nalguns casos ficamos a pensar que “ali há
gato!”. Mas, isso, deixo-vos para a leitura.
Do médico ao mecânico, sucedem-se personagens que, de tão
bem retratadas, puxam a obra para um realismo tantas vezes esquecido. Senão,
vejamos se não conhecemos de qualquer lado este mecânico:
“Mas o mecânico, de quem estava eu falando, mestre Salgado
como o tratavam (alto, cabelo preto, um nariz desproporcional, mãos de quase
meio metro), não mudou de lugar a oficina. Era um homem vivido (aprendi esta
expressão com o meu pai, ele que mal vê um homem com que se lhe simpatiza a
inteligência é esse o primeiro dito que diz, é um homem vivido) não mais que
sessenta anos, menos que cinquenta com certeza que também não, fato de macaco
sujo de tinta e suado de pneu. Ninguém o tinha como grande culto para os
saberes das literaturas e das matemáticas e essas coisas inerentes a doutores
mas de jipes nada havia que não soubesse. Dominava motores e arriscava-se em
pinturas mirabolantes, com vários tons de luminoso. As feições tinha-as mas
estragadas, queimadas pelo tempo, será a solidão um lugar que cansa e onde as
noites custam a passar. O andar tinha-o esquisito e fazia questão de mostrar
aos que menos conhecia um lenho já em cicatriz na barriga da perna. Marcas de
guerra para sempre ficam, no físico e no psíquico, quem lá esteve que me
confirme ou me desminta. Fizeram-nos uma emboscada, pá. Os pretos apareceram em
magote e começaram a disparar, pá. Um tiro acertou-me nesta perna e senti o
ventinho de outro rasar-me a orelha, pá. Consegui andar dali p’ra fora e andei
fugido quase duas semanas. Guerra não é p’ra meninos minha senhora, todos estes
ditos dele oriundos, que já se viu de ter sido belo frequentador da já nossa
conhecida Universidade da vida.” (P. 23-24)
Se isto é realismo, também há magia em Bem-vindos a Esta
Noite Branca, história onde até os mortos falam.
Mas, sobretudo, é com a realidade dos dramas do nosso
desgraçado quotidiano que Gonçalo Naves se preocupa. Desgraçado, digo bem.
Basta entrar na intimidade desta família, ou no hospital, ou no lar de idosos.
Não julguem que a juventude do Gonçalo não se nota no livro.
Mas, a traição conjugal, o machismo, o aborto, os sem-abrigo, a velhice (!) são
abordados por este jovem, agora já crescido de 19 anos, com uma maturidade
impressionante. Onde é que ele viu tudo isto, onde é que viveu tudo isto para,
de caneta em punho, nos chamar a atenção para o mundo?
A viagem para o branco. Ai, querem branco?
“Eram as paredes brancas e havia um cheiro a cadáver
envenenando a cara de quem lá fazia entrada. A primeira sala por que passava
António até alcançar o quarto da mulher era um sítio com uma infinita extensão
de branco. Retangular, para dez metros de branco uma porta cinzenta que dava
caminho para sítio desconhecido. Fria e feia e, quando se abria, mais camadas
de branco infinito trazia. Na sala havia uma mesa também retangular e várias
cadeiras em volta, nas cadeiras sentavam-se velhos, velhos caducos, podres,
prontos para deitar fora. Nunca estava Marta entre essa velhice, seria
especial, deles se destacando, pelo melhor ou pelo pior nunca haverá
conhecimento. Todos os velhos imóveis, sentados, os olhos apedrejados de
passado. Não se percebia que tipo de velhice tinham derivado a serem demasiado
naturais dentro dela. Em redor da mesa eram uns sete sentados, o tronco
curvado, as mãos tremendo, um havia que se destacava. Vestia um casaco preto
perfeitamente limpo, os bolsos a transbordarem de memórias, nem um único ponto
em que perfeição não estivesse presente. No cocuruto da cabeça ainda lhe
resistiam alguns cabelos brancos que, envergonhados, com as paredes se
confundiam. Faltava-lhe força para demonstrar fraqueza, todos eles eram sós mas
aquele velho seria mais só que os outros. Sempre que António passava por aquela
sala fixava-se o velho nele e, perturbado, desviava António o olhar
assemelhando-se assim a homem louco, tudo em volta olhava menos o velho e assim
evitando dar de frente com a morte que carregavam aqueles olhos. Tentava o
velho seguir-lhe o olhar mas já para aquilo não tinha andamento, compreende-se
as consequências da avançada idade, não será assunto de desprimor. O impasse só
cessava com o olhar do velho perdendo-se onde já não havia entendimento.” (P.
84)
Bem-vindos a Esta Noite Branca. Que metáfora!
“Todos os velhos imóveis, sentados, os olhos apedrejados de
passado” (p. 84).
Grândola, 9 de Abril de 2016
Joaquim Gonçalves
(Texto lido na apresentação na
SMFOG - Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense)